Movimento da gravura no Pará

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Pablo Mufarrej



A gravura na região amazônica destaca-se com a produção que surge na última década no estado do Pará, principalmente em Belém. O que não significa validar sua importância somente a partir desse período; seria uma injustiça com Valdir Sarubbi, Ronaldo Moraes Rêgo e Jocatos, grandes artistas responsáveis em manter viva essa tradição. Foi o surgimento de uma nova geração de excelentes gravadores preocupados em trabalhar de maneira colaborativa e em diálogo com a tradição da gravura brasileira, reconhecendo-a e integrando-se a ela, que talvez tenha sido a maior contribuição de todos esses anos de persistência – anos, diga-se de passagem, ainda germinais.

De fato, podemos assegurar que existe uma gravura na Amazônia capaz de afirmar-se no cenário contemporâneo. Vale notar os desafios impostos aos métodos de trabalho com a gravura em metal ou combinada com outros meios verificados, por exemplo, em Elaine Arruda, Pablo Mufarrej, Diô Viana e Ronaldo Moraes Rêgo; as expansões que definem outros campos da linguagem com o emprego das novas mídias , limites explorados nas estampas numéricas de Alexandre Sequeira e a liberdade como Jocatos e Eliene Tenório incorporam signos identificados com o universo feminino e suburbano, sem perder de vista as qualidades que são peculiares ao meio gráfico.
Energia que carrega o vento úmido e contaminado dos portos do Norte, que nos alimentam por séculos com sinais vivos da ancestralidade. Lugar, este, sentido e compartilhado.
  
Armando Sobral
Brasília,  dezembro de 2011

João Carlos Torres (Jocatos)




 


“(...)
Mãos carregam caixas
Calos ardem
E os prendem guindastes
E os predem músculos e salário
Homens sob caixas
Ombros sob caixas
Sonhos sob caixas
Seres sob o peso
do trabalho sem quimeras:
Caixas sob caixas.”

Fragmento do poema Cais do porto,
de João de Jesus Paes Loureiro
Altar em chamas, 1983

João Carlos Torres, ou simplesmente Jocatos, é um artista que dispensa maiores apresentações para nós que vivemos e amamos as artes na Amazônia. Sua seriedade e compromisso com a visualidade da região atravessam décadas de trabalho árduo e inventivo. De espírito inquieto, pontua sua produção nas mais variadas possibilidades de expressão, indo da pintura ao site specific com muita desenvoltura e perspicácia. Mais particularmente, seu nome confunde-se com a história da gravura no Pará e no Brasil.
Muito atento aos desdobramentos e exigências da arte hoje, procura ao seu modo, traduzir os caminhos da contemporaneidade numa obra personalíssima e de grande validade para compreendermos o que somos.  Suas mãos calejadas já carregaram muitas caixas e latas. Estas, mesmo que abandonadas, já inutilizadas pelo desuso, são resgatadas pela memória e pela capacidade de resiginificação das coisas.  Através do olhar sensível de Jocatos deparamo-nos com este universo complexo, prenhe de significados. É barroco, é violentamente delicado, é o refluxo da erudição plástica aportando no bairro populoso e vibrante do Guamá: é a resposta possível, impossível de ser ignorada.
Nesta exposição, as caixas e latas que carregou o transportam para outras paragens, outras paisagens. Roda mundo, roda peão. O peão brincante que gira-girando na mão espalmada de menino vira-virando prumo de mestre-de-obras na mão firme do homem-artista. A ponta metálica do peão-prumo risca a lata, marca o papel, marca a vida e a passagem do tempo. O espaço transmuta-se em obra. O Canadá está aqui, o Guamá está aqui. O menino está aqui, o homem-artista está aqui. O que viveu em Quebec, Nova York e Lisboa apruma-se aos vestígios de seu eterno palacete guamaense.
Andarilho de dedos de aço vai tracejando seus encontros e desencontros. Uma linha, uma mancha, uma transparência, uma sobreposição. Um dia, uma noite. Noites brancas. Sol e abandono. Clareiras da alma. Carrega o buril no olhar, mapas e territórios recém-descobertos: explorador de filigranas. Cartografias em silêncio apontam para rumos não identificados. Sabemos de onde vem, jamais o fim desta jornada.

Armando Queiroz
Curador e artista visual

Ronaldo Moraes Rêgo



Ronaldo Moraes Rêgo representa seu profundo apego à sua paisagem materna, a Amazônia, no universo miniaturizado de sementes, texturas, folhas, arbustos, etc. Olhar ampliado sobre a natureza e revelada em tramas cuidadosamente elaboradas segundo princípios técnicos e materiais identificados com a alta tradição da gravura.

Elaine Arruda




Elaine encontra nas oficinas de funilaria do Porto do Sal os meios e o conhecimento necessários para enfrentar a gravura em metal de grandes dimensões, refaz seu modus operandi: amplia o repertório técnico associado aos processos diretos de gravação e adapta maquinários para atender as exigências impostas pela expansão dos limites físicos e processuais da gravura.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Diô Viana




Diô Viana tem em comum com Egon o lugar de origem, porém o seu caminho polariza as escolhas de seu conterrâneo. Enquanto Egon encontra suas matrizes no jogo casual e as imprime de maneira econômica e rudimentar; em Diô a técnica é intenção, afirma-se como princípio. Foi impressor de grandes nomes da gravura brasileira como Ana Letícia e Fayga Ostrower, experiências significativas que mostram o seu interesse em pesquisar e dominar plenamente os procedimentos da gravura como fundamento da sua prática artística. Experimenta uma combinação notável de modalidades gráficas e processos sem perder-se no encantamento da técnica – da densidade dos traços ríspidos e tensos da ponta-seca, que marca o ritmo sobre o exuberante campo de cor, às camadas mais sutis dos veios da madeira. Atualmente Diô Viana reside fora do país, onde desenvolve seus estudos sobre gravura não-tóxica e processos associados à fotografia.

Egon Pacheco




Egon Pacheco atua na cidade onde nasceu, Santarém. A série de xilogravuras estampadas em tecidos são impressões recolhidas de estacas fincadas nas calçadas da sua cidade natal, registro de sulcos gravados da matéria mortificada pelo tempo. Fica evidente o seu engajamento em questões socioambientais quando promove nos depósitos de madeira do IBAMA uma série de intervenções com enormes xilogravuras impressas em tecido a partir de topos das toras apreendidas. As gravuras ásperas de Egon Pacheco são escritas duras de um manifesto, gesto isolado e impotente diante das mudanças de seu tempo. 

Armando Sobral





Em uma trajetória demarcada pela gravura, pelo processo de pesquisa, pela experimentação, Armando Sobral nos últimos anos tem transitado pela fusão de técnicas, pelas discussões referentes à História da Arte, à condição artesanal e conceitual em que os tempos se fundem, promovendo o encontro entre o passado e o mundo contemporâneo.
A paisagem e o humano unem-se em um cenário que delineia um lugar específico, simbólico de uma cidade que se constitui a beira do rio, em meio ao fluxo de trocas comerciais e culturais.  O Ver-o-Peso em sua geografia labiríntica, circunscrita por uma arquitetura resultante do período fausto da borracha, vivido entre o final do século XIX e começo do século XX, tornou-se um ícone de Belém, cidade situada ao Norte do Brasil.
As Mantas, aqui, não significam cobertor, mas largas tiras de peixe que ficam expostas ao sol, ao tórrido clima tropical. Estas tiras serviram de matriz para que Sobral desenvolvesse o seu trabalho. Foi em 1997, próximo ao Mercado, em pleno Ver-o-Peso, que o artista fotografou as postas de pirarucu salgadas, dependuradas no açougue, hoje desativado. No ano seguinte, a partir das fotos, realizou a gravura que recebeu o nome de Peixe, só depois as denominou: Mantas.
As Urnas também surgem do cenário do Ver-o-Peso, da imagem proveniente do vai-e-vem dos barcos abarrotados de potes de cerâmica, fazendo com que o barro quase se confunda com as águas, não fosse a cercania colorida, na qual predomina os adornos das embarcações. Para Armando Sobral a visualidade referencia o lugar, torna-se “valor matricial de identificação”. Como ele mesmo comenta: “A memória e o lugar atuam decisivamente em minhas escolhas”Daí Mantas e Urnas advirem da memória e do lugar que se tornou símbolo da cidade onde nasceu. Neste complexo sistema, convivem artistas, barqueiros, açougueiros, comerciantes, erveiros, usuários e turistas que tornam móveis os espaços e formam a malha de trocas culturais.
A escolha pela fusão da xilogravura e da escultura, por procedimentos artísticos que privilegiam o fazer coletivo, vêm se manifestando, principalmente, a partir dos anos 2000. Durante o Arte Pará 2006, as Mantas ocuparam o Mercado de Peixe e situadas atrás do boxe de cada peixeiro, receberam cheiros, resíduos de sangue, escamas, que, após o corte, respigavam na gravura. A memória recoberta de matéria acumulou-se ao tempo e aderiu à xilo, que já trazia o peixe salgado, transportado para a fibra da madeira, fixo à lona. Essas mesmas tiras de peixe, imanadas de histórias, transferem-se para o Labirinto do Ver-o-Peso, compartilhando com as Urnas um passado que se torna presente, se atualiza.
Ainda em 2006, Armando Sobral invade a sede da Fotoativa, ocupando espaços com enormes esculturas de madeiras, delicados e bélicos desenhos, além de gravuras que se concretizam no papel, no solo perfurado. Artefatos como pontas de lanças, armas ancestrais, cercam o ambiente, remetem ao passado que se sobrepõe a diferentes épocas, removendo camadas para que a estrutura da casa antiga seja revelada, em sua ruína. Imagens remotas evocado pela obra do artista se entrecruzam ao presente. Mais uma vez a relação espaço tempo se evidencia.                                                                            
Nova experiência, em 2009, Barroco, Traço Infinito repete o procedimento de Artefatos: promove o encontro com o trabalho artesão, no qual mãos e idéias dividem o ateliê; e sabe-se que “no interior do ateliê haverá um trabalho indissolúvel, de natureza teórico-prática, onde a artesanalidade e sua constante reelaboração estão numa dialética permanentemente pontuada pela produção de conceitos, que reiniciam outros ciclos do fazer”. Este princípio tem continuidade em 2010 com Jardins Sagrados, que reassume o Barroco, desta vez incorporando o espaço museológico, absorvendo-o em seus espelhos.
Contínuas pesquisas, processos que se encadeiam em tessituras formam um ciclo e permitem revelar o Labirinto Ver-o-Peso. Xilos e esculturas formam-se a partir do desenho, dos esboços, da fissura que se abre no branco do papel para que a forma nasça e materialize-se. Com as peças dispostas no espaço, o artista propõe que os corpos caminhem entre Urnas e Mantas. Só assim, as ânforas conservam o vinho, o sal conserva a carne e o ritual se cumpre.
Marisa Mokarzel
Belém 2010


Alexandre Sequeira





Chega-se a Nazaré de Mocajuba percorrendo um estreito caminho de terra de, aproximadamente, nove quilômetros, contados a partir da estrada que liga Castanhal à região litorânea de Marapanin e Marudá, à altura do km 42 - nove quilômetros que representam, para a comunidade, um enorme isolamento social e econômico. Seus limites são os roçados, a mata em torno e o rio Mocajuba à frente, com sua densa vegetação de mangue. As atividades produtivas do lugar se restringem a culturas de subsistência: plantio da mandioca, farinha, pesca e extração do caranguejo; além de um pequeno comércio de bebidas e alimentos, ponto de encontro dos nativos. À fadiga do trabalho na roça segue o torpor das horas quentes do dia. As casas, a maioria de barro, distribuem-se no raio de alguns metros da rua principal, via de terra batida paralela ao rio. A ocupação espontânea do sítio pode ser notada pela disposição das moradas, que ora se encontram alinhadas e ora dispersas sugerindo um traçado casual e sinuoso. No centro, destaca-se uma pequena igreja branca e singela. Sobre o rio avança o trapiche de madeira que serve à vila como porto e, para nós visitantes, de mirante, onde podemos nos debruçar, no fim da tarde, sobre os belos jogos de espelho das águas do Mocajuba. Este mundo à parte é o lócus no qual Alexandre Sequeira assenta o compasso e descreve seu arco poético. Já revelara em fotografias de anos anteriores o que nestes retratos capta com extraordinária sensibilidade: o sentido do lugar no humano. Em sua viagem ao Peru realizou inúmeras fotografias em preto e branco; muitas delas – certamente, as mais intensas - de descendentes dos quíchuas e de pequenas vilas andinas retratadas através de seus moradores. Interessa-se, principalmente, pela observação de cenas e costumes, registrados em plena atividade. Transmite seu deslumbramento com o lugar deixando-o transparecer na própria geografia humana. Pouco tempo depois passa a se dedicar aos retratos estampados sobre papel tingido. O retrato remonta ao passado imemorial. Os egípcios o faziam na pedra atribuindo-lhe o poder mágico da eternidade, suas representações em constante imobilidade são qualidades relacionadas ao desejo de permanência e continuidade. Laiciza-se com os gregos que imprimem ao gênero um profundo sentimento de humanidade. A fotografia vem questionar o status de unicidade do retrato tradicional como gênero artístico, conferindo à representação humana dados mais diretos e imediatos da realidade, e, às lembranças, a consciência de mortalidade e de transitoriedade da vida. Questões que apontam para outra chave de compreensão: a construção da memória. Em uma das visitas a Nazaré de Mocajuba, Alexandre colheu um depoimento significativo. Ao mostrar ao Sr. Carmelino o próprio retrato, ouviu dele o seguinte comentário: ”perdi minha esposa e meu filho e sinto muita falta deles, mas não consigo lembrar os seus rostos”. Os retratos de Nazaré alojam-se em uma ausência, tornam aparente a perda visual do passado. Alexandre não propõe reconstituir essas vidas – não se pode recuperar o corpo que sentiu – mas esforça-se em atribuir um valor poético à memória, fazendo confluir nessas vidas a sua própria subjetividade. Adotou e foi adotado pelo lugar. Retrata e se vê retratado, caminha para o centro da representação. Este jogo de oposições impressiona ao primeiro contato com as imagens – contemplamos quem nos observa. Seus métodos de trabalho permitem outras relações. As fotografias são tratadas no computador para serem estampadas em tamanho natural. Concentra a energia da representação no modelo removendo-o do contexto da foto e, em um gesto de apropriação, insere as imagens dos moradores em seus próprios objetos – rede, mosquiteiro, lençóis. Adensa significados: o tecido é suporte e índice, encontra-se na dobra de dois espaços; o retrato se apodera da fatura do objeto para formar a unidade conceitual da obra. Imagem e suporte interpenetram-se e irradiam, na sua totalidade, a carga simbólica do trabalho. O modo e o ângulo de visão são os mesmos em todas as fotos: opta por registros estáticos e frontais. No primórdio, a fotografia impunha ao modelo um tempo prolongado de exposição devido à baixa sensibilidade das matrizes fotográficas, o que pode justificar, em parte, as poses enrijecidas dos primeiros retratos – talvez se trate de um estilo condicionado pela técnica. Atualmente, a permanência de tal atitude com o retrato só pode ser compreendida como ação poética. Alexandre exclui intencionalmente dados mais contingentes do modelo – expressões faciais, movimentos involuntários, dramas – e evita, dessa forma, o teatral no assunto; como o fotógrafo de rua, age  com extrema objetividade em seus retratos. Não interfere e nem interpreta, não cede às flutuações do gosto, capta a própria imanência do modelo com isenção e imparcialidade; são efígies. As imagens gravitam impunes ao tempo em um estado de permanente suspensão, que se rompe com as circunstâncias físicas do suporte – seria demais supor que, subjacente às suas escolhas, Alexandre interroga-se sobre o signo da mortalidade? O que se vê, a partir do contato com essas obras, é uma expansão contínua que se internaliza em camadas sucessivas de significados. Isso se deve à rica trama de valores significantes alinhavados em um lento processo de vivência e de construção de sentido, a ponto de, até - arrisca-se um palpite - ele próprio, o artista, em um movimento especular, projetar-se como objeto da representação. Por fim, um acontecimento trágico, natural e, porque não, emblemático. Dois moradores, antes fotografados, vieram a falecer recentemente. No velório, suas imagens puderam ser cultuadas in memoriam. Alexandre ouviu da esposa de um dos falecidos: “foi Deus quem te trouxe para fazer a foto dele”.
Armando Sobral
Belém 2004