Movimento da gravura no Pará

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Alexandre Sequeira





Chega-se a Nazaré de Mocajuba percorrendo um estreito caminho de terra de, aproximadamente, nove quilômetros, contados a partir da estrada que liga Castanhal à região litorânea de Marapanin e Marudá, à altura do km 42 - nove quilômetros que representam, para a comunidade, um enorme isolamento social e econômico. Seus limites são os roçados, a mata em torno e o rio Mocajuba à frente, com sua densa vegetação de mangue. As atividades produtivas do lugar se restringem a culturas de subsistência: plantio da mandioca, farinha, pesca e extração do caranguejo; além de um pequeno comércio de bebidas e alimentos, ponto de encontro dos nativos. À fadiga do trabalho na roça segue o torpor das horas quentes do dia. As casas, a maioria de barro, distribuem-se no raio de alguns metros da rua principal, via de terra batida paralela ao rio. A ocupação espontânea do sítio pode ser notada pela disposição das moradas, que ora se encontram alinhadas e ora dispersas sugerindo um traçado casual e sinuoso. No centro, destaca-se uma pequena igreja branca e singela. Sobre o rio avança o trapiche de madeira que serve à vila como porto e, para nós visitantes, de mirante, onde podemos nos debruçar, no fim da tarde, sobre os belos jogos de espelho das águas do Mocajuba. Este mundo à parte é o lócus no qual Alexandre Sequeira assenta o compasso e descreve seu arco poético. Já revelara em fotografias de anos anteriores o que nestes retratos capta com extraordinária sensibilidade: o sentido do lugar no humano. Em sua viagem ao Peru realizou inúmeras fotografias em preto e branco; muitas delas – certamente, as mais intensas - de descendentes dos quíchuas e de pequenas vilas andinas retratadas através de seus moradores. Interessa-se, principalmente, pela observação de cenas e costumes, registrados em plena atividade. Transmite seu deslumbramento com o lugar deixando-o transparecer na própria geografia humana. Pouco tempo depois passa a se dedicar aos retratos estampados sobre papel tingido. O retrato remonta ao passado imemorial. Os egípcios o faziam na pedra atribuindo-lhe o poder mágico da eternidade, suas representações em constante imobilidade são qualidades relacionadas ao desejo de permanência e continuidade. Laiciza-se com os gregos que imprimem ao gênero um profundo sentimento de humanidade. A fotografia vem questionar o status de unicidade do retrato tradicional como gênero artístico, conferindo à representação humana dados mais diretos e imediatos da realidade, e, às lembranças, a consciência de mortalidade e de transitoriedade da vida. Questões que apontam para outra chave de compreensão: a construção da memória. Em uma das visitas a Nazaré de Mocajuba, Alexandre colheu um depoimento significativo. Ao mostrar ao Sr. Carmelino o próprio retrato, ouviu dele o seguinte comentário: ”perdi minha esposa e meu filho e sinto muita falta deles, mas não consigo lembrar os seus rostos”. Os retratos de Nazaré alojam-se em uma ausência, tornam aparente a perda visual do passado. Alexandre não propõe reconstituir essas vidas – não se pode recuperar o corpo que sentiu – mas esforça-se em atribuir um valor poético à memória, fazendo confluir nessas vidas a sua própria subjetividade. Adotou e foi adotado pelo lugar. Retrata e se vê retratado, caminha para o centro da representação. Este jogo de oposições impressiona ao primeiro contato com as imagens – contemplamos quem nos observa. Seus métodos de trabalho permitem outras relações. As fotografias são tratadas no computador para serem estampadas em tamanho natural. Concentra a energia da representação no modelo removendo-o do contexto da foto e, em um gesto de apropriação, insere as imagens dos moradores em seus próprios objetos – rede, mosquiteiro, lençóis. Adensa significados: o tecido é suporte e índice, encontra-se na dobra de dois espaços; o retrato se apodera da fatura do objeto para formar a unidade conceitual da obra. Imagem e suporte interpenetram-se e irradiam, na sua totalidade, a carga simbólica do trabalho. O modo e o ângulo de visão são os mesmos em todas as fotos: opta por registros estáticos e frontais. No primórdio, a fotografia impunha ao modelo um tempo prolongado de exposição devido à baixa sensibilidade das matrizes fotográficas, o que pode justificar, em parte, as poses enrijecidas dos primeiros retratos – talvez se trate de um estilo condicionado pela técnica. Atualmente, a permanência de tal atitude com o retrato só pode ser compreendida como ação poética. Alexandre exclui intencionalmente dados mais contingentes do modelo – expressões faciais, movimentos involuntários, dramas – e evita, dessa forma, o teatral no assunto; como o fotógrafo de rua, age  com extrema objetividade em seus retratos. Não interfere e nem interpreta, não cede às flutuações do gosto, capta a própria imanência do modelo com isenção e imparcialidade; são efígies. As imagens gravitam impunes ao tempo em um estado de permanente suspensão, que se rompe com as circunstâncias físicas do suporte – seria demais supor que, subjacente às suas escolhas, Alexandre interroga-se sobre o signo da mortalidade? O que se vê, a partir do contato com essas obras, é uma expansão contínua que se internaliza em camadas sucessivas de significados. Isso se deve à rica trama de valores significantes alinhavados em um lento processo de vivência e de construção de sentido, a ponto de, até - arrisca-se um palpite - ele próprio, o artista, em um movimento especular, projetar-se como objeto da representação. Por fim, um acontecimento trágico, natural e, porque não, emblemático. Dois moradores, antes fotografados, vieram a falecer recentemente. No velório, suas imagens puderam ser cultuadas in memoriam. Alexandre ouviu da esposa de um dos falecidos: “foi Deus quem te trouxe para fazer a foto dele”.
Armando Sobral
Belém 2004

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