Chega-se a Nazaré de
Mocajuba percorrendo um estreito caminho de terra de, aproximadamente, nove
quilômetros, contados a partir da estrada que liga Castanhal à região litorânea
de Marapanin e Marudá, à altura do km 42 - nove quilômetros que representam,
para a comunidade, um enorme isolamento social e econômico. Seus limites são os
roçados, a mata em torno e o rio Mocajuba à frente, com sua densa vegetação de
mangue. As atividades produtivas do lugar se restringem a culturas de
subsistência: plantio da mandioca, farinha, pesca e extração do caranguejo;
além de um pequeno comércio de bebidas e alimentos, ponto de encontro dos
nativos. À fadiga do trabalho na roça segue o torpor das horas quentes do dia. As
casas, a maioria de barro, distribuem-se no raio de alguns metros da rua
principal, via de terra batida paralela ao rio. A ocupação espontânea do sítio
pode ser notada pela disposição das moradas, que ora se encontram alinhadas e
ora dispersas sugerindo um traçado casual e sinuoso. No centro, destaca-se uma
pequena igreja branca e singela. Sobre o rio avança o trapiche de madeira que
serve à vila como porto e, para nós visitantes, de mirante, onde podemos nos
debruçar, no fim da tarde, sobre os belos jogos de espelho das águas do
Mocajuba. Este mundo à parte é o lócus
no qual Alexandre Sequeira assenta o compasso e descreve seu arco poético. Já
revelara em fotografias de anos anteriores o que nestes retratos capta com
extraordinária sensibilidade: o sentido do lugar no humano. Em sua viagem ao
Peru realizou inúmeras fotografias em preto e branco; muitas delas –
certamente, as mais intensas - de descendentes dos quíchuas e de pequenas vilas
andinas retratadas através de seus moradores. Interessa-se, principalmente,
pela observação de cenas e costumes, registrados em plena atividade. Transmite
seu deslumbramento com o lugar deixando-o transparecer na própria geografia
humana. Pouco tempo depois passa a se dedicar aos retratos estampados sobre
papel tingido. O retrato remonta ao passado imemorial. Os egípcios o faziam na
pedra atribuindo-lhe o poder mágico da eternidade, suas representações em
constante imobilidade são qualidades relacionadas ao desejo de permanência e
continuidade. Laiciza-se com os gregos que imprimem ao gênero um profundo
sentimento de humanidade. A fotografia vem questionar o status de unicidade do
retrato tradicional como gênero artístico, conferindo à representação humana dados
mais diretos e imediatos da realidade, e, às lembranças, a consciência de mortalidade
e de transitoriedade da vida. Questões que apontam para outra chave de
compreensão: a construção da memória. Em uma das visitas a Nazaré de Mocajuba,
Alexandre colheu um depoimento significativo. Ao mostrar ao Sr. Carmelino o
próprio retrato, ouviu dele o seguinte comentário: ”perdi minha esposa e meu
filho e sinto muita falta deles, mas não consigo lembrar os seus rostos”. Os
retratos de Nazaré alojam-se em uma ausência, tornam aparente a perda visual do
passado. Alexandre não propõe reconstituir essas vidas – não se pode recuperar
o corpo que sentiu – mas esforça-se em atribuir um valor poético à memória,
fazendo confluir nessas vidas a sua própria subjetividade. Adotou e foi adotado
pelo lugar. Retrata e se vê retratado, caminha para o centro da representação. Este
jogo de oposições impressiona ao primeiro contato com as imagens – contemplamos
quem nos observa. Seus métodos de trabalho permitem outras relações. As
fotografias são tratadas no computador para serem estampadas em tamanho natural.
Concentra a energia da representação no modelo removendo-o do contexto da foto
e, em um gesto de apropriação, insere as imagens dos moradores em seus próprios
objetos – rede, mosquiteiro, lençóis. Adensa significados: o tecido é suporte e
índice, encontra-se na dobra de dois espaços; o retrato se apodera da fatura do
objeto para formar a unidade conceitual da obra. Imagem e suporte interpenetram-se
e irradiam, na sua totalidade, a carga simbólica do trabalho. O modo e o ângulo
de visão são os mesmos em todas as fotos: opta por registros estáticos e
frontais. No primórdio, a fotografia impunha ao modelo um tempo prolongado de
exposição devido à baixa sensibilidade das matrizes fotográficas, o que pode
justificar, em parte, as poses enrijecidas dos primeiros retratos – talvez se trate
de um estilo condicionado pela técnica. Atualmente, a permanência de tal
atitude com o retrato só pode ser compreendida como ação poética. Alexandre
exclui intencionalmente dados mais contingentes do modelo – expressões faciais,
movimentos involuntários, dramas – e evita, dessa forma, o teatral no assunto;
como o fotógrafo de rua, age com
extrema objetividade em seus retratos. Não interfere e nem interpreta, não cede
às flutuações do gosto, capta a própria imanência do modelo com isenção e
imparcialidade; são efígies. As imagens gravitam impunes ao tempo em um estado
de permanente suspensão, que se rompe com as circunstâncias físicas do suporte
– seria demais supor que, subjacente às suas escolhas, Alexandre interroga-se
sobre o signo da mortalidade? O que se vê, a partir do contato com essas obras,
é uma expansão contínua que se internaliza em camadas sucessivas de
significados. Isso se deve à rica trama de valores significantes alinhavados em
um lento processo de vivência e de construção de sentido, a ponto de, até -
arrisca-se um palpite - ele próprio, o artista, em um movimento especular, projetar-se
como objeto da representação. Por fim, um acontecimento trágico, natural e,
porque não, emblemático. Dois moradores, antes fotografados, vieram a falecer
recentemente. No velório, suas imagens puderam ser cultuadas in memoriam. Alexandre ouviu da esposa
de um dos falecidos: “foi Deus quem te trouxe para fazer a foto dele”.
Armando Sobral
Belém 2004
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